Rio de Janeiro, 29 de junho de 2011
Marcelo, dear
A correspondência que pediu está aqui. Não estranhe. Somos apenas dois (e, ao mesmo tempo, muitos) diante de um espaço/lugar cujos assuntos teóricos abordados envolvem questões literárias, a escrita da intimidade e do sujeito.
Sabe que a carta possui o formato do dia-a-dia e que cada pessoa se coloca de forma diferente no cotidiano. É o que faz o aprendizado nas cartas não ser formal. Porém, elas começam a ganhar importância com os modernistas, ao estabelecerem contatos por esta via, originalizando uma concepção de memória, uma "cumplicidade arquivista [...] maior dos aspectos teóricos e conceituais atinentes [...] à pesquisa da memória cultural e literária, da tradição, do cânone, quer à organização, descrição, referência e preservação dos arquivos" (MARQUES, 2003, p. 141-156). É assim que os bastidores da História são revelados, vindo à tona um lado pouco conhecido daquilo que ficou para a posteridade.
Concordo quando você afirma que a carta de um escritor/poeta, em especial, transforma um problema aparentemente banal em literatura, fazendo dela um espaço discursivo que interessa não só ao remetente e ao destinatário, mas também a todos do meio literário - sempre diz para não confiar em carta de escritor/poeta pelo fato dele usar um espaço supostamente privado para ficcionalizar a intimidade, numa subjetivação do "eu" para cada sujeito remetente, e trazer à tona questões públicas (O que é poesia? O que é literatura?). Confia-se, sim, na figura, no perfil editado por ele. Não é isto?
No exercício da escrita como uma disciplina da escuridão em si, Marcelo, há o processo de autoconhecimento que eleva o escritor/poeta ao lugar de sujeito. Dentro da escrita tradicional, ele pega o que interessa para criar um "eu" para o outro (negociando para cada outro). É neste processo de subjetivação que o sujeito s e conhece: o sujeito se descobre a partir dos fragmentos (os "hupomnêmata" - grande lugar de conhecimento fragmentado, segundo Foucault) do outro, que se descobre a partir dos fragmentos do outro que se descobre a partir dos fragmentos do outro... com o pensamento indo da escrita para o sujeito e não do sujeito para a escrita.
Vi, pelas suas palavras, que a literatura não é só o oficial (o texto publicado). É também o oficioso (o esboço, o manuscrito, etc.). É a trama que importa e não a origem. E a carta, como elemento marginal do discurso, passa a fazer parte dos estudos literários a partir dos anos 60, quando há esta descentralização. O processo de criação e de estilo (considerando a vida do autor, a transformação das suas experiências pessoais em experiências estéticas, a conversão da existência física em poesia, em jogos de construção, mas sem cair no biografismo); a relação de texto (publicado) e protexto (manuscrito) que faz o escritor/poeta trocar esta palavra por aquela; e outros pontos tão relevantes quanto estes citados também passam a ser analisados. Nas cartas trocadas entre escritores/poetas, por exemplo, existe uma via de mão dupla na relação do escritor/poeta considerado mestre com o escritor/poeta que busca uma luz. Quem cresce não é só quem aprende, mas quem ensina também - o que faz com que as posições de correspondente e destinatário se confundam. "O sábio tem igualmente necessidade de manter suas virtudes alerta; assim, estimulando a si mesmo, ele recebe também estímulo de um outro sábio" (FOUCAULT, 1984, p. 155). É o que acontece, Marcelo, quando o poeta Cristóvão Rilke responde à carta do jovem Sr. kappus: Sr. kappus não é o único que aprende com as palavras de Rilke. O próprio também aprende a formalizar, a sistematizar seu pensamento, quando as palavras "têm que significar o que há de mais discreto, de quase indizível" (RILKE, 1984, p. 37). Um "indizível" que ensina a ambos.
Você parece estar próximo quando escrevo esta carta. Uma carta que "é ao mesmo tempo um olhar que se lança sobre o destinatário [...] e uma maneira de se oferecer ao seu olhar através do que é dito sobre si mesmo" (FOUCALT, 1983, p. 156); é um lugar no qual se exercita a solidão de uma escrita que é feita para si mesmo; é ver o outro e ver como o outro nos vê.
A carta dentro do romance também é um espaço particular que pode ter sua confissão subjetivada pelos personagens. Se o gênero romance nasce com Cervantes e seu Dom Quixote, que parodia formas já existentes, Choderlos de Laclos, em As Relações Perigosas, usufrui do romance epistolar (que surge no séc. XVIII dialogando com a pedagogia já estabelecida pelas cartas usadas para educar) para transformá-la em ficcional. O romance de Choderlos, como sabe bem, é híbrido, e seu íntimo, a ideia de confissão, de sinceridade, vira ficção, criando um estilo de escrita, objetivando o que é subjetivo, mostrando como a intimidade pode ser manipulada e se aproximando de uma verossimilhança que atrai a curiosidade do leitor. "'Eu acreditaria', disse ela, depois de ter lido o manuscrito, 'prestar real serviço a minha filha presenteando-a com este livro no dia do seu casamento" (LACLOS, 2008, p. 11). Pode deixar, Marcelo. Não me engano mais. O que parece ser sincero e verdadeiro pode ser "apenas" ficção.
Outro nome de destaque é o nosso dear Silviano Santiago. A saudade de Silviano fica menos intensa ao falar dele. Sua escrita ficcional em primeira pessoa não comunica apenas por comunicar. Necessita de um leitor participativo dentro do contexto do romance moderno. Assim, seu pastiche atinge o público imediatamente - um público feito de semi-afirmações em tempos de reprodução, sem lugar para a origem. "Sou hoje antepassado e prole de mim mesmo. Serei o Adão da bíblia de Marte?" (SANTIAGO, 2005, p. 153). Mande lembranças a Silviano.
Falamos de cartas através de uma. E esta "uma", esta carta que espero que seja lida por ti: a quem ela pertence? A mim, que escrevo estas linhas, que carrego em mim a vontade de enviar-lhe este pedaço de papel? Ou você, o receptor, aquele que despertou este meu desejo de escrever-lhe? E será que as pessoas citadas nesta carta também têm algum direito?
É claro que faço tais indagações já sabendo a sua resposta: Philippe Lejeune. "... a carta é compartilhada. Ela tem vários aspectos: é um objeto (que se troca), um ato (que pode ser publicado)..." (LEJEUNE, 2008, p. 252). Há inúmeros detalhes que escapam da lei, que apenas foca questões mais amplas (fora o fato da correspondência não figurar nos pensamentos mais constantes do legislador). Desta forma, Lejeune resume a carta em três aspectos que você, Marcelo, já conhece, mas que sempre vale a pena repetir: "A partir do momento em que é postada, torna-se fisicamente propriedade do destinatário e quando este morre, de seus herdeiros; mas o exercício de seu direito de propriedade é limitado estritamente pelos dois aspectos seguintes: mesmo postada, a carta continua sendo, intelectual e moralmente, propriedade de seu autor - e, depois de sua morte, de seus herdeiros, que são os únicos que podem autorizar a publicação (conforme a lei de 1957 sobre a propriedade intelectual); mas o exercício desse direito poderá ser limitado, de facto, se o autor não estiver mais com a carta (salvo no caso de uma cópia ter sido conservada) e, de jure, pelo terceiro aspecto: na medida em que uma carta desvela a vida privada, toda pessoa envolvida (o autor, o destinatário ou terceiros) pode se opor à divulgação e à publicação (Código Civil, artigo nove) (LEJEUNE, 2008, p. 253).
Agora preciso anunciar minha despedida. Espero que brevemente possamos conversar mais. Receba esta carta como prova de sua influência. Receba-a, como recebi do destino, com grande felicidade, o presente de trocar palavras contigo, de conhecer-te, e este "conhecer fisicamente [...] foi para um reconhecimento" (ANDRADE, s.d., p. 28). Eu não o conhecia, mas o reconheci.
Um abraço
Dio
BIBLIOGRAFIA
ANDRADE, Mário. Cartas a Manuel Bandeira. Rio de Janeiro. Ediouro, s.d.
FOUCAULT, Michel. A Escrita de Si. In: Ditos e Escritos V - Ética, Sexualidade, Política. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004, p. 144-162.
LACLOS, Choderlos de. As Relações Perigosas. São Paulo. Noca Cultural, 2008.
MARQUES, Reinaldo. O Arquivamento do escritor. In: Souza, Eneida Maria de; Miranda, Wander Mello (org) Arquivos Literários. São Paulo. Ateliê Editorial, 2003, p. 141-156.
PHILIPPE, Lejeune. O Pacto Autobiográfico. Belo Horizonte. EduFMG, 2008.
RILKE, Rainer Maria. Cartas a um jovem poeta / A canção de amor e morte do porta-estandarte Cristóvão Rilke. Porto Alegre / Rio de Janeiro. Globo, 1984.
SANTIAGO, Silviano. Histórias Mal Contadas. Rio de Janeiro. Rocco, 2005.
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