*Terceiro lugar no concurso de contos de terror da Faculdade CCAA.
Tarde demais. Quando a instituição se deu conta da repercussão e decidiu levar o caso a sério, apressando-se em dar uma versão convincente do ocorrido, a história já havia chegado à boca dos alunos. Conversas ao pé do ouvido levantavam muitas possibilidades. Boato? Sensacionalismo? Marketing? Algo para além da nossa vã compreensão? O fato era que algo que, a princípio, parecia ser banal, sem importância, tinha sacudido a faculdade em suas extremidades. Pêlos arrepiavam-se, unhas eram trituradas por dentes famintos, olhos esbugalhavam-se com o tom de voz soberano dos propagadores dela, a figura central de todo o caos instalado, o ser inexplicável, a criatura que marcou a vida e a morte de muita gente
Era mais um fim de noite de estudo para os alunos e de trabalho para os funcionários da Faculdade Antônio Cândido. Salas, aos poucos, ficavam vazias. Elevadores, cheios. Despedidas efêmeras na porta da instituição educacional decoravam os últimos minutos daquele momento. Às 22h10min, já não se tinha sinal de estudantes por lá. Entretanto, como era de costume e fazia parte do procedimento padrão, Jonatan – um dos funcionários – checou todos os andares, desligando as luzes, fechando as salas e conferindo se não havia de fato mais alunos circulando pela Faculdade.
- Pronto! Conferi de cima para baixo, do último ao primeiro andar. Está tudo certo – falou com firmeza.
-Acho que não – respondeu Guimarães, outro funcionário que, pelos monitores, via tudo. – Você passou no quarto andar, Jonatan?
- Sim – disse o rapaz surpreso. – Por quê?
- Tem uma menina sentada no quarto andar. Ela está lendo! – Exclamou apontando para a tela. – Ela não sabe que a saída é às 22h00min? E pela luz forte de lá, a iluminação do corredor não foi desligada.
- Que estranho! Eu jurava que tinha passado por lá. Mas tudo bem. Vamos nós de novo – esbravejou levemente Jonatan, sabendo que por causa disso, chegaria mais tarde em casa.
Foi ele pelo elevador. As portas abriram-se como se fossem uma passagem para outro mundo. Jonatan deu uma última olhada para Guimarães e para os outros funcionários que se faziam presentes, antes de embarcar. O número quatro, acionado. O fechar das portas estalaram em sua alma num encontro de pavor e tensão. Era a primeira vez que algo daquele tipo estava acontecendo. Quando chegou ao quarto andar, a escuridão do lugar parecia recebê-lo com um sarcástico e tenebroso “bem-vindo”.
- Guimarães na escuta?!
- Na escuta, Jonatan!
- O quarto andar está completamente apagado.
- Como assim? Aqui no monitor está tudo muito claro.
- Mas aqui está escuro.
- E a menina? Você achou?
- Calma. Terei que ligar a lanterna.
Jonatan a procurou e nada. Após achar que a menina teria descido pela escada, o funcionário aproximou-se da câmera colocada no quarto andar e, usando seu rádio transmissor, disse que não havia ninguém ali. Porém, Guimarães e todos os outros que assistiam pelo monitor, pálidos de perplexidade pelo o que viam, tentavam vencer o congelamento provocado pela cena que os assombrava: Jonatan, de frente para a câmera e com o rádio na mão, dizendo não ver ninguém, e a menina ali, ao seu lado, encarando-o com seu vestido branco, cabelos longos meio embaraçados, rosto angelicalmente escatológico e livro no peito entre suas mãos. De repente, a câmera parou, o rádio quebrou e tudo sumiu.
A partir de então, todas as noites na Faculdade Antônio Cândido eram cobertas de um cinza amedrontador, um nublado catastrófico, uma escuridão que pairava naqueles que iam ao quarto andar após as 22h00min da noite. Sumiços sucediam-se. Versões apareciam. A faculdade prontamente divulgou uma nota informando que os funcionários que sumiam, na verdade, eram apenas demitidos por não se adequarem a filosofia de trabalho da empresa. E sobre a menina vista nos monitores da recepção, tudo havia acontecido por causa de uma imagem congelada. Porém, a menina, apelidada de “a menina que lê” já era famosa no meio universitário.
Nenhum aluno ficava além da hora no período da noite. Ainda mais estudando no quarto andar. Havia chegado um momento em que até alunos estavam sumindo e ninguém queria ser o próximo. Porém, houve uma aula que acabou às 21h59min. A saída foi uma correria para os elevadores e para a escada. Nesta confusão, Kleitor escorregou, bateu com a cabeça no chão e ali mesmo desmaiou, ficando para trás. Kleitor era aluno da faculdade e, assim como todos os outros, queria ir para casa o mais rápido possível. Sua única companhia até então era o sangue que saída de sua cabeça. Até então.
A vida acadêmica não podia parar. Professores davam aula, alunos estudavam e funcionários trabalhavam. Aliás, os funcionários eram a fonte dos alunos. A cada comunicado da faculdade, uma nova história era contada à boca miúda, negando a versão oficial. Funcionários decidiam no jogo de azar ou sorte quem iria até o quarto andar, já que era obrigação deles. E o escolhido da vez foi Guimarães. Logo ele que viu muitos amigos sumirem, alunos e funcionários. Logo ele que estava na primeira aparição da menina. Logo ele que tinha medo do escuro.
- Estamos com você, Guimarães! Vai dar tudo certo! Coragem! – incentivavam os outros funcionários (porém aliviados por dentro por não estarem no lugar do pobre Guimarães). Guimarães riu timidamente e entrou no elevador. A cada andar, o coração parecia querer sair pela boca. Chegando ao seu destino, suas mãos suadas e trêmulas mal conseguiam segurar o rádio transmissor e a lanterna previamente ligada. O rádio toca.
- Que susto, Josué! Quer me matar?
- Só queremos saber se está tudo bem com você.
Apesar da respiração ofegante, Guimarães disse que estava tudo bem. Viu que a luz do quarto andar estava desligada e pensou logo em descer. Mas ouviu uma voz. Guimarães engoliu o medo e decidiu descobrir se era algum aluno ou a temida menina. Ao colocar os pés no corredor, a menina olhou nos seus olhos, jogou o livro que carregava na sua direção e mais um sumiço se fez. Sobrou o rádio e a lanterna no chão. Josué o chamava e o silêncio era a única resposta.
Refeito do desmaio e com a cabeça machucada devido à queda, Kleitor acordou e viu a tal menina arrastando Guimarães pelo quarto andar, levando-o sabe-se lá para onde. E mais distante, o rádio quebrado. A menina, puxando Guimarães pelo braço, olhou para o lado e viu que tinha um corpo ali. Na mesma hora, Kleitor fechou os olhos e fingiu-se de morto ou que ainda estava desmaiado. A menina, após levar Guimarães para algum lugar do quarto andar, voltou e puxou Kleitor pela mão. Levou-o para a última sala do quarto andar que, inexplicavelmente, estava aberta. Lá, estavam todos os desaparecidos. Sentados, comportados e mortos. Kleitor foi colocado na última cadeira e teve a aula da sua vida. A menina, antes de abrir o livro, iniciou sua aula apresentando os dois novos colegas da turma.
- Antes de começar nossa aula, quero apresentar dois novos amigos. Qual o nome de vocês? – Kleitor continuou de olhos fechados e segurando a respiração o máximo que podia. – Vocês estão tímidos, eu entendo. Espero que com as aulas, vocês possam se sentir mais a vontade.
A menina lia histórias de terror, enfocando em assassinatos, mortes, estupros, decapitações, torturas e esquartejamentos. Sempre com a participação dos seus alunos. Kleitor via cabeças rolando pela sala, braços e pernas cortados, corpos abertos e rasgados pelo pé da mesa da então professora e muito, muito sangue. Tudo para tornar mais real as histórias. A menina, com seu livro aberto, lia a história e só parava para a representação dos momentos mais sangrentos. Kleitor viu-se em um filme de terror. Mas no fim, salvou-se.
- Por hoje é só, minhas crianças. Vocês, meus mais novos alunos, deixei vocês se ambientarem hoje. Mas só por hoje! Próxima aula, quero ver vocês participando.
Da mesma forma que ela apareceu, ela sumiu, saindo da sala e desaparecendo no corredor. Kleitor não conseguia se mover de tanto medo. Muitas horas depois, ele saiu do lugar, passando entre os corpos estirados na sala. Foi até a recepção, mas a faculdade já estava fechada e vazia. Era madrugada. Teve que esperar o dia amanhecer. Gritou desesperadamente até o sol aparecer no horizonte.
No dia seguinte, encontraram Kleitor em estado de pânico. Ouviram sua história. De imediato, foram até a sala onde ele disse ter acontecido tudo. Nada foi encontrado. Kleitor manteve sua versão. Fez escândalo na frente de todos. Disse que não estava louco, que tinha visto tudo. A alta cúpula preferiu levar Kleitor para um lugar reservado, mesmo com sua resistência. Alunos e funcionários assustaram-se. Era a primeira vez que alguém tinha visto de perto a tal menina. Mais que isso: era a primeira vez que alguém tinha retornado do quarto andar após vê-la. Logo a faculdade anunciou que tudo se deu pelo trauma do aluno Kleitor ter ficado trancado na faculdade. E com todas as histórias inventadas, ele ficou impressionado e imaginou tudo aquilo. E que os responsáveis seriam cobrados por isso. Em outras palavras, os funcionários.
Nunca mais Kleitor foi visto. As histórias continuaram. Os sumiços no quarto andar também. Assim como as satisfações da instituição. Josué era o único funcionário da faculdade que havia restado daquela última experiência. Evitava falar sobre aquilo. Lembrava das últimas palavras do amigo Guimarães e do rádio mudo. Não demorou muito tempo, pediu demissão, antes que fosse sorteado para ir ao quarto andar. Despediu-se de todos, funcionários, diretores, professores e alunos. Ao olhar pela última vez a Faculdade Antônio Cândido, viu na janela do quaro andar uma menina e um recado escrito à sangue que dizia “vem estudar comigo”. Coçou os olhos e nada mais viu. Seguiu seu caminho. E a menina, suas aulas.