Translate

terça-feira, 6 de novembro de 2007

Breve leitura de "Uma estadia no inferno", de Arthur Rimbaud.

Único livro que Arthur Rimbaud publicou em vida, Une Saison en Enfer, "Uma estação no inferno" (ou como já foi traduzido, "Uma estadia no inferno") é uma prodigiosa autobiografia psicológica do menino de 17 anos que viveu a vida como se ela fosse um inferno. A estação deste inferno seria uma estação do trem chamado vida? Se trabalhássemos com o título "Um estadia no inferno", poderíamos dizer que esta estadia era passageira? Destacaremos algumas passagens deste livro para entender melhor a obra de Jean Nicolas Arthur Rimbaud.No início de “Uma estadia...”, Rimbaud escreve: “... meu caro Satanás, vos conjuro, uma pupila menos irritada! E aguardando algumas pequenas covardias atrasadas, vós que amais no escritor a ausência das faculdades descritivas ou instrutivas, vos destaco estas horrendas folhas...”. Logo na abertura de sua obra, Rimbaud deixa claro sua preferência pelo o que é considerado o lado “negro” da vida. Não que esta preferência fosse para chocar sua família, seus amigos ou quem quer que fosse. Como ele mesmo disse, “... meu caro Satanás, vos conjuro, uma pupila menos irritada...”. Era mais fácil seu contato com Satã do que com Deus. E seu lado, digamos, demoníaco, era constante tanto na vida quanto nos escritos.Em “Sangue mau”, uma frase chama a atenção: “ A mão na pena vale a mão na enxada”. Desde cedo, mesmo quando ainda era estudante, os escritos de Rimbaud já eram classificados por seus professores como excelentes. A vida desregrada e a poesia aflorada pareciam dizer: “Trabalhar para quê? Você é poeta!”. A afirmação de que o trabalho dignifica o homem cai por terra mais ainda quando ele afirma: “A honestidade da mendicância me aflige”. É como se ele quissesse dizer: “Quem quer trabalhar podendo viver pedindo dinheiro aos outros?” Mesmo assim, a sociedade preferia o trabalho que Rimbaud encarava como “mentiroso”. Eis seu motivo de tanta aflição.Ainda em “Sangue mau”, o tema Cristo versus Satã volta a ser mencionado: “O espírito está próximo, porque Cristo não me ajuda, dando à minha alma nobreza e liberdade”. Esta nobreza e liberdade parecem existir unicamente pelo fato do poeta não querer ajuda divina. Uma luz que o ajudasse a compreender a si mesmo. E é essa vida sem Cristo que faz seu espírito nobre e livre. Livre para acreditar no que quiser. Entretanto, mesmo Satanás sendo uma “pupila menos irritada”, o flerte com Deus aparece: “Espero Deus feito um guloso”. É a esperança de que esta pupila mais irritada fique boa.No mesmo capítulo, o poeta escreve: “Nas estradas, pelas noites de inverno, sem lar, sem roupas, sem pão, uma voz apertava meu coração gelado: ‘fraqueza ou força: eis-te, é a força. Não sabes aonde vais nem porque vais, entra em todo lugar, responde a tudo. Não te matarão mais do que fosses cadáver’. De manhã, eu tinha o olhar tão perdido e a postura tão morta, que aqueles que encontrei talvez não me vissem”. Pela primeira vez entra em cena o vidente Rimbaud. Há toda uma questão se Rimbaud era mesmo vidente ou se isso era apenas uma imagem ou uma metáfora. Todavia, aqueles que não acreditam em nada que não esteja explicado nos livros perdem uma das grandes forças da poesia. Rimbaud via e ouvia coisas que para ele eram verdadeiras. Era a ciência, a medicina, a filosofia e “os divertimentos dos príncipes e os jogos que eles proibiram! Geografia, cosmografia, mecânica, química!...”. Mas como o próprio Rimbaud também escreve: “... e não sabendo como explicar-me sem palavras pagãs, queria calar-me”. “Se Deus me concedesse a calma celeste, aérea, a reza – como os antigos santos – Os santos! São fortes!... Farsa contínua! A minha inocência me faria chorar. A vida é a farsa a ser levada por todos”. Aqui, Rimbaud enumera tudo o que Deus não lhe deu e chama a vida de “farsa” assim como o trabalho para ele é mentiroso. Ele enxerga a vida como uma farsa por ver além do que um simples mortal pode ver.No seguinte capítulo, entitulado “Noite no inferno”, Rimbaud inicia descrevendo um veneno que tomara e que o fizera ficar mais perto de Satanás: “É o inferno, eterna pena! Vejam como o fogo se levanta! Queimo como deve. Vá, demônio!”. Adiante, o vidente retorna: “As alucinações são inúmeras. É bem o que eu sempre tive: sem fé na história, o esquecimento dos princípios. Calarei isto: poetas e visionários ficariam com ciúmes. Sou mil vezes o mais rico, sejamos avarentos como o mar”. Há aparentemente um costume já aceitável. As alucinações sempre estiveram presentes. Seriam elas as responsáveis pelo lado vidente do poeta? “Satanás, brincalhão, você quer me dissolver, com teus charmes”. Mais uma clara evidência de que o demônio era mais presente do que Cristo.Em “Delírios I – Virgem Louca / O esposo infernal”, Rimbaud narra a confissão de um companheiro de inferno que na verdade é companheira. A companheira é a esposa do Diabo. Esta amante do demônio descreve-o como uma criatura que vive numa certa ambigüidade: ao mesmo tempo que este ser é malvado, mesquinho e sem escrúpulos, também mostra-se piedoso, inteligente e astuto. “Eu o seguia, é preciso!”. Tal sentença demonstra que esta mulher não tinha escolha. Seu destino era mesmo ficar ao lado de Satã. E o trecho final deste capítulo é recheado de ironia: “ ‘Um dia talvez ele desaparecerá maravilhosamente; mas é preciso que eu saiba, se ele deve subir para um céu, que eu veja um pouco a assunção (subida ao céu da Virgem Maria) do meu amiguinho’”. Ficam as dúvidas: esta mulher seria uma alucinação? Ela de fato existiu? Ou seria o próprio Rimbaud?No capítulo seguinte, “Delírios II – Alquimia do verbo”, Rimbaud explica o que fez seu verbo ser “acessível, cedo ou tarde, a todos os sentidos”. Eis sua explicação: “Eu me acostumava com a alucinação simples: eu via muito francamente uma mesquita no lugar de uma fábrica, uma escola de tambores feita por anjos, coches nas estradas do céu, um salão no fundo de um lago; os monstros, os mistérios; um título de comédia levantava horrores na minha frente. Depois explicava meus sofismas mágicos com a alucinação das palavras. Acabei por achar sagrada a desordem do meu espírito”. As imagens que Rimbaud via lhe eram reais. O que no começo chocava, agora tinha virado um costume. De suas alucinações vem a grande força de sua poesia. Pensando desta forma, talvez se seu espírito não fosse o que foi, a pessoa Arthur Rimbaud não teria sido o poeta Arthur Rimbaud.Apesar de achar “sagrada” toda esta falta de ordem no seu espírito, não era fácil para ele lidar com isto: “Meu temperamento se amargurava. Eu dizia adeus ao mundo em cantigas”. É quando o poeta cita “Canção da mais alta torre” como uma destas cantigas com tal significado.No capítulo “O impossível”, ele diz que “meus dois tostões de razão acabaram!” É a visão definitiva de que não haveria mais espaço para a razão. A loucura que sempre lhe foi companheira torna-se ainda mais forte (loucura de acordo com aqueles que não entendiam sua persona e o próprio Rimbaud era uma delas). “Mandei ao Diabo as palmas dos mártires, os raios da arte, o orgulho dos inventores...”. Aqui Rimbaud mostra que não é só ele que está com o demônio. Os inventores, tão perseguidos na época de Rimbaud também estavam, digamos “no mesmo barco”. Toda pessoa envolvida com a arte tem um pouco do Diabo em si. Isso nos remete à Platão, quando ele diz, na República, que o poeta é um ser nocivo para a sociedade por desviá-la do caminho certo para a construção da sociedade perfeita. Rimbaud era assim e tentava enxergar nos seus contemporâneos um pouco deste lado revolucionário que cada poeta ou inventor tem.Em “O relâmpago”, o poeta percebe que o fim da vida se aproxima. “A minha vida está gasta”. Rimbaud era um pouco esse relâmpago, que passou e iluminou gerações de poetas anárquicos. Porém, no mesmo capítulo, ele ainda mostra-se capaz de achar a morte muito simples para sua capacidade. “Não!não! agora me revolto contra a morte! O trabalho parece leve demais ao meu orgulho”.No antepenúltimo capítulo nomeado “Manhã”, Rimbaud faz uma espécie de análise de si próprio e tenta entender o porquê dele chegar a seu estado de fraqueza atual. Além disto, ele afirma: “No entanto, hoje, creio ter terminado o relato do meu inferno. Era mesmo o inferno; o antigo, aquele que o filho do homem abriu as portas”. Seria o verdadeiro inferno de Rimbaud tudo o que vinha da força divina? O paraíso dele era com o demônio?“Uma estadia no inferno” termina com “Adeus”. Neste capítulo, ele registra: “Tentei inventar novas flores, novos astros, novas carnes, novas línguas. Pensei adquirir poderes sobrenaturais. Pois é! Devo enterrar minha imaginação e minhas lembranças! Uma bela glória de artista e contador levada embora!”. Já não importava mais se aquelas alucinações eram verdadeiras ou não, se ele era vidente ou não. Era momento de se retirar e guardar para si suas recordações.Sabe-se que esta “morte” de Rimbaud foi somente uma morte poética, pois nada mais foi registrado em seu nome. Rimbaud parou de escrever com 17, 18 anos e foi tentar a vida na África, onde faleceu aos 32 anos.Arthur Rimbaud chocou professores e poetas renomados. “Uma estadia...” trata o Diabo com tanto carinho e põe a figura de Deus tão distante do poeta que, numa época em que a igreja católica era forte, não havia como evitar o choque. É uma mistura de estranhamento e grotesco. Talvez sejam estas duas marcas em sua obra que o coloca como “pai” da poética moderna, poética esta que rompe com a clássica, por ser marcada pelo negativismo, enquanto a clássica é caracterizada pela busca do belo. Este negativismo é claro em Rimbaud assim como também é em Charles Baudelaire, outro grande poeta francês. Arthur Rimbaud foi o modernista que deu a mão ao Diabo por não alcançar a mão de Deus.

2 comentários:

Andréia Alves disse...

Gostei do post... muito obrigada

Xxx disse...

Olá,

Adoro Rimbaud... e gostei muito do texto...

Abraços,

Kleber