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terça-feira, 6 de novembro de 2007

Leitura do filme "Ilha das flores", de Jorge Furtado.

O filme trata de um lugar no Rio Grande do Sul chamado Ilha das flores, onde as pessoas têm como alimento as sobras do lixo que é direcionado aos porcos. Eis o tema da obra. Entretanto, é interessante notarmos todo o processo por qual passa a estória para chegar ao seu denominador comum.Antes mesmo do filme começar, algumas frases são mostradas. A primeira é: “Este filme não é uma ficção”. Tal sentença deixa claro que o que será mostrado a seguir é real. Por mais chocante ou grotesco que seja, trata-se de um fato verídico. A segunda frase é: “Existe um lugar chamado Ilha das flores”. Esta frase já tem como objetivo despertar o interesse do espectador. Qual o interesse em saber que existe este lugar? O que acontece lá? Estas são perguntas que surgem em razão de tal sentença. Já a terceira e última antes do início do filme é: “Deus não existe”. Tal frase ataca o que é certeza para muitos. Ainda mais sendo uma afirmação. E mais uma vez o espectador pergunta-se: Por que este tipo de coisa é dita? Por que atacar uma certeza absoluta de tantas pessoas? Após estas frases, o planeta Terra é mostrado do espaço sideral ao som de “O Guarani”, música de Carlos Gomes, o primeiro brasileiro (mulato) a fazer sucesso na Europa. Tal canção é considerada um marco, um símbolo de orgulho para a República Federativa do Brasil. Tendo esta música de fundo, nosso planeta é envolvido pelo nome “Ilha das flores”, como se o filme quisesse que o mundo inteiro descobrisse a existência deste lugar e o que acontece por lá. A partir de então, inicia-se o filme.Podemos perceber que, mesmo tendo um tema sério para ser tratado, existe a tendência de se falar do caso com humor através da repetição de explicações sem precisar utilizar-se de melodrama. Tenta-se sensibilizar o espectador pelas metáforas, por exemplo, apresentadas no discurso. Também vale a pena notar a generalização que é feita. Muita coisa é dita, explicada e mostrada para, no fim, chegar ao problema da Ilha das flores.O narrador começa dando a localização exata de onde está e dizendo que há um japonês (Sr. Suzuki) numa plantação de tomates. Ele define o japonês como um ser humano, que por sua vez “destingue-se dos outros animais principalmente por causa do tele-encéfalo altamente desenvolvido e o polegar opositor”. O narrador continua sua sequência de explicações falando sobre o tele-encéfalo. “Ele permite ao ser humano armazenar informações, relacioná-las, processá-las e entendê-las”. Já o polegar opositor “permite o movimento de pinça nos dedos, o que nos permite a manipulação de precisão”. Através da voz do narrador e de imagens, prova-se que “graças ao tele-encéfalo altamente desenvolvido combinado com o polegar opositor, o ser humano pôde fazer muitas coisas para melhorar seu planeta...”. Enquanto tal afirmação é dita, imagens históricas de monumentos romanos e gregos são mostradas como prova daquilo que está sendo falado. Entretanto, quando o narrador está prestes a terminar sua frase com “...inclusive...”, mostra-se a bomba atômica em seu momento de êxtase. O narrador fica em silêncio para que o som da bomba faça-se perceptível. Esta passagem expressa claramente a idéia de que nem tudo o que o ser humano cria é bom. Sua mesma capacidade para fazer coisas boas serve para fazer coisas terríveis. O caso da Ilha das Flores é uma boa citação desta última vertente. Mas o narrador, não tendo terminado aquela sua frase, termina-a dizendo que o ser humano, além de tudo que já criou e cria, também usa seu tele-encéfalo altamente desenvolvido e o polegar opositor para cultivar tomates. E, mais uma vez, é mostrada uma cena que comprova isto: um tomate é retirado do tomateiro.Segue-se a continuidade de definições. Para falar sobre o dinheiro que o Sr Suzuki recebe do supermercado pela venda dos seus tomates, o narrador segue a linha histórica, dizendo que o dinheiro foi criado antes de Cristo. Chegando neste assunto, afirma-se que Cristo era um judeu. O verbo ser no passado levamos a pensar que Cristo não é mais judeu. Por isso o povo judeu sentiu-se tão abandonado nas mãos dos nazistas no final da primeira metade do século XX. Isto também lembra um pouco a frase mostrada antes do início do filme: “Deus não existe”. As pessoas que vivem na Ilha das flores possivelmente têm o mesmo tipo de pensamento ao passar pela situação que passam. Voltando ao narrador que diz que Cristo era um judeu, explica-se que o judeu, num conceito geral, tem o tele-encéfalo altamente desenvolvido com o polegar opositor. “São, portanto, seres humanos”. Ao mesmo tempo que isto é dito, cenas de judeus sofrendo com o nazismo são mostradas. Nota-se que durante todo tempo essa relação entre as imagens verbais e as imagens visuais e sonoras é presente. A voz do narrador, que nunca fica mais alta ou mais baixa, faz neste momento uma pausa para dizer que os judeus também são seres humanos enquanto corpos de judeus são atirados num buraco onde outros corpos de judeus apodrecem. Um bom exemplo da capacidade do ser humano de criar coisas terríveis, como já dissemos anteriormente.Depois disto, o narrador volta-se novamente para o dinheiro. Em seguida, fala do supermercado, para chegar até Dona Anete (que, segundo o narrador, é também um ser humano por possuir um tele-encéfalo altamente desenvolvido com o polegar opositor), uma mulher que, com o dinheiro vindo de seu trabalho na venda de perfumes, foi ao mercado comprar aqueles tomates cultivados na plantação do Sr. Suzuki. Lembrando que tudo isto segue a relação do verbo, do som e da imagem. Este perfume, fonte de renda de Dona Anete, não vem das flores diretamente, mas sim de uma fábrica. O narrador fala do lucro que Dona Ante tem com a compra e venda destes perfumes e existe um ponto interessante em todo este trecho que trata do lucro: É explicado que o lucro era proibido antigamente. Porém, como sabemos, hoje em dia é livre. Mostra-se então, num mesmo quadro, o patrão sorrindo e o funcionário com uma cara como se perguntasse: “Rir? De quê? Por quê?” Mas não fica nisso. Quando foi dito que o lucro era proibido, podia-se ver uma cena onde membros da Igreja Católica Apostólica Romana tinham fisionomias sérias. Com a liberação do lucro, num outro quadro, os mesmos estavam com dinheiro na mão e com os sorrisos abertos. Nada mais humano. Cai por terra a divindade. Lembra-se da frase “Deus não existe”? Ela também se encaixa aqui.O narrador segue sua saga explicando detalhe por detalhe a compra que Dona Anete fizera no mercado. Ela comprara, com o dinheiro do seu trabalho, tomates e carne de porco. Tudo será consumido por sua família em um dia. “Alguns tomates que o Sr. Suzuki trocou por dinheiro com o supermercado e que foram trocados pelo dinheiro que Dona Anete obteve com o lucro na troca dos perfumes extraídos das flores, foram transformados em molho para a carne de porco”. Tudo isto é mostrado rapidamente, passando-nos uma idéia de como este processo que, para muitos é complicado, acontece todo dia, toda hora.Um dos tomates é jogado no lixo por Dona Anete pelo fato dela julgar que ele “não tinha condições” de virar molho. É interessante ver que o narrador poderia dizer que este tomate em questão estava pobre, estragado, ou algo assim. Mas não. Ele simplesmente diz que, de acordo com o julgamento de Dona Anete, este tomate “não tinha condições” de virar molho. Tal vocabulário é usado por sabermos onde este tomate vai parar no final do filme. Então este tomate vai para o lixo, “que provoca doenças, além do aroma ser desagradável”. O narrador segue falando sobre o lixo: “Por isto, o lixo é levado para determinados lugares, bem longe, para que possa livremente sujar, cheirar e atrair doenças”. A partir daqui começa a ser mostrada a Ilha das flores, porém, sem isto ser dito. O que apenas vemos é um lixão e o caminhão de lixo chegando com crianças correndo atrás dele. É a alegria de ver a comida chegar. Caminhão este que traz não só o tomate que “não tinha condições” de virar molho de Dona Anete, como outros lixos vindos de outros lugares. “Em Porto Alegre, um dos lugares escolhidos para que o lixo cheire mal e atraia doenças chama-se Ilha das flores” Com esta frase, o narrador quebra o encanto. Quando falamos de ilha, lembramos de cenários paradisíacos, gente bonita divertindo-se. Ainda mais numa ilha chamada Ilha das flores. Porém, aqui, o que vemos é o retrato do grotesco. Por mais que a definição de ilha aplique-se ao lugar, “ilha é um monte de terra cercada por água por todos os lados”, o que realmente cerca toda aquela gente é pobreza e desigualdade. Enquanto o lugar é mostrado, com sua água cercando-o, uma música de fundo transmite um sentimento ruim. Como se uma grande decepção tivesse acontecido. Uma das frases que aparecem antes do início do filme é: “Existe um lugar chamado Ilha das flores”. Esta frase despertava a curiosidade do espectador em saber o que era esta ilha. Uma ilha só de flores? Uma ilha de diversão? Uma ilha de descanso? Não. Uma ilha cheia de lixo onde as crianças correm atrás do caminhão de lixo felizes por saber que terão sua comida. Esta é a decepção. E o encanto do espectador dá lugar à revolta do mesmo. Já o narrador continua explicando, como se nada tivesse acontecido, o que é água, o que são flores. O que sobra de lixo, falta de flores na Ilha das flores. Neste lixo, está o tomate que Dona Anete jogou no lixo. O narrador fala dos porcos que existem no lugar, pois é pra eles que vai este tomate. Porcos estes que têm um dono. Um dono que tem dinheiro, um terreno (mostra-se o contrato do terreno, seguindo a linha da comprovação pela imagens) e empregados. Agora podemos perceber que a prioridade do lixo é dos porcos, pois este terreno (onde o lixo é posto) é cercado para que os porcos não saiam e as pessoas não entrem. Apesar desta inversão de valores, o narrador segue com sua voz inalterada. E o texto continua sem adjetivar tais acontecimentos. O lixo julgado adequado pelos empregados para os porcos do patrão são separados. O que é considerado inadequado para os porcos é usado na alimentação de mulheres e crianças. O narrador explica que mulheres e crianças são seres humanos por possuírem o tele-encéfalo altamente desenvolvido e o polegar opositor... e nenhum dinheiro. O dinheiro é o que faz a diferença entre estas pessoas e o dono dos porcos. É por causa do dinheiro que ele é o dono dos porcos, o dono do terreno e o patrão dos empregados que priorizam seus porcos e deixam para segundo plano as pessoas da Ilha das flores. Estas pessoas não têm quem as priorize, não têm um dono. Os porcos, sim. Separadas em grupos de dez, elas só têm cinco minutos para pegar seu alimento, enquanto os porcos comem o que podemos chamar de “o melhor do pior”. Quando o narrador explica a duração de cinco minutos, o click do relógio faz-se perceber além de passar uma angústia. O tempo passa e aquelas pessoas têm que pegar logo sua comida. No término do tempo, elas são retiradas do terreno. Caso o tomate do Sr Suzuki que Dona Anete jogou fora não tenha sido separado para os porcos, ele estará disponível para os seres humanos da Ilha das flores. Mostra-se a placa do lugar para reafirmar o assunto principal do filme.Na parte final do filme, a mesma canção (O Guarani, de Carlos Gomes) volta a ser tocada. Entretanto, desta vez, ela é executada por uma guitarra distorcida. Depois de ser mostrada a Ilha das flores e sua real situação, esta distorção nos remete ao protesto. Um protesto tendo como base a distorção de uma guitarra nos remete à Jimi hendrix, considerado o maior guitarrista de todos os tempos, elevando até o último volume sua guitarra (como sempre fazia) ao executar o hino nacional americano no festival de música Woodstock. Era a época da guerra do Vietnã. E para mostrar seu descontentamento com a guerra, Hendrix pegou o símbolo maior dos Estados Unidos e o deturpou completamente, levando os jovens presentes (que também eram contra a guerra) à loucura. Este meio de protesto existe na parte final da Ilha das flores. O Guarani, um símbolo nacional, é “dilacerado” pela guitarra distorcida. E tendo esta música dentro deste formato como pano de fundo, o narrador diz que “o que coloca o ser humano da Ilha das flores depois dos porcos na prioridade da escolha de alimentos é o fato de não terem dinheiro, nem dono”. E ainda completa lembrando que todo ser humano caracteriza-se por ter o tele-encéfalo altamente desenvolvido, o polegar opositor e por ser livre. Essa falta de liberdade é que faz com que as pessoas da Ilha das flores não sejam vistas como seres humanos. E o conceito de liberdade é muito bem descrito através de uma citação de Cecília Meireles do livro “Romanceiro da Inconfidência”: “Liberdade é uma palavra que o sonho humano alimenta, que não há ninguém que explique e ninguém que não entenda”.

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